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A nova política sobre vacinas do YouTube (e os velhos desafios)

O YouTube divulgou em 29 de setembro de 2021 a sua nova “Política contra desinformação sobre vacinas”. Essencialmente, o que diz a nova política é que:

“O YouTube não permite conteúdo que apresente sérios riscos de danos ao divulgar informações médicas incorretas sobre as vacinas aplicadas atualmente, que foram aprovadas e confirmadas como seguras e eficazes pelas autoridades locais e a Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso vale somente para conteúdo que contradiz as orientações dessas entidades sobre a segurança, a eficácia e os componentes das vacinas.”

De uma forma geral, a intenção do YouTube parece ter sido ampliar o escopo da “Política de informações médicas incorretas relacionadas à COVID-19”, publicada em maio de 2020. O foco agora não são apenas as vacinas contra a COVID-19, mas para todo tipo de vacinas. A governança da desinformação sobre vacinas contra a COVID-19 permanece a mesma, mas além disso há diretrizes para desinformação sobre todos os outros tipos de vacinas aprovadas, seguras e eficazes, contra diversos tipos de doenças.

Escrevi sobre essa política anterior em junho de 2020 (“As mudanças na governança do YouTube em função da pandemia”). Naquele momento, destaquei que “as mudanças nas políticas e diretrizes indicam uma atuação mais proativa da plataforma sobre o conteúdo nela publicado” e também que “há desinformação circulando, mas ao menos os algoritmos de busca e recomendação parecem limitar a disseminação desse tipo de conteúdo.”

A nova política sobre vacina é válida a partir do momento em que foi divulgada e aplica-se também a vídeos mais antigos, mas pode demorar a efetivamente cobrir todo o conteúdo nocivo sobre vacinas disponível no YouTube.

Trata-se de uma nova política global, motivada principalmente pelo fortalecimento dos movimentos antivacina nos EUA e países europeus, e não me parece que o impacto no Brasil será muito significativo. A hesitação vacinal por aqui parece mais ligada às vacinas contra a COVID-19 e à desinformação ligada à pandemia, questões que já estavam sendo tratadas na política anterior da plataforma.

No Brasil, temos uma cultura de vacinação muito forte no país e é precipitado classificar as pessoas que se opõem à vacinação em geral como um “movimento” antivacina: é algo muito mais ligado à hesitação vacinal que grupos estruturados contra a vacinação.

Dessa forma, é uma ampliação bem-vinda, louvável, mas ainda parece limitada. A linha que separa o que é desinformação e o que não é jamais estará clara, e nesse conteúdo limítrofe que mora o problema. É fácil encontrar no YouTube conteúdo nacional que poderia ser tomado como antivacina — algo que já deveria ter sido excluído da plataforma, uma vez que a “Política de informações médicas incorretas relacionadas à COVID-19” está vigente desde maio de 2020. 

A desinformação sobre as vacinas contra a COVID-19 continua presente no YouTube

Em um vídeo publicado pelo canal “Os Pingos no Is” intitulado “A vacina contra a Covid-19 é perigosa? Anthony Wong responde” em outubro de 2020, por exemplo, o médico Anthony Wong dizia que não tomaria a vacina contra a COVID-19 por já ter anticorpos contra a doença (sem dizer o como teria adquirido esses anticorpos). Em outros momentos ele chega a dizer a que vacina pode fazer mal para quem já foi diagnosticado com COVID-19 em algum momento. São orientações que divergem das recomendações médicas e podem levar uma pessoa que já foi infectada com a COVID-19 a não se vacinar. O Brasil até o dia de hoje já contabilizou mais de 21 milhões de infectados. Pensem no impacto que a não vacinação dessas pessoas pode causar! Veja no vídeo a seguir, a partir dos 19:23.

O vídeo se aproxima de 2.7 milhões de visualizações e ainda está disponível no YouTube. São palavras que saídas da boca de um médico possuem um apelo ainda maior, por causa de uma figura de autoridade. É um tipo de conteúdo que deveria ter sido removido do YouTube por se posicionar contra as vacinas, além de falar sobre supostos danos que elas causariam.

Outro momento em que Anthony Wong levou sua postura antivacinação ao grande público foi no vídeo “Dr. Anthony Wong comenta até que ponto uma vacina contra a COVID-19 é necessária”, publicado no canal “Jovem Pan News”. Aqui o médico faz novas afirmações contrárias às recomendações da OMS e especialistas da área de saúde: diz que as vacinas não são necessárias para conter a pandemia e que o tratamento precoce com medicamentos sem evidência de eficácia seria uma melhor alternativa. Assista a seguir:

Anthony Wong foi um médico negacionista que influenciou negativamente muita gente nos últimos meses. Ele faleceu de COVID-19 em janeiro de 2021, em um hospital da Prevent Senior, e teve a causa de sua morte ocultada. Seu discurso desinformativo continua presente no YouTube.

Outro tipo de postura antivacinação se apega à falácia de que as pessoas teriam sua liberdade tolhida caso a vacinação seja obrigatória. O assunto ainda é uma controvérsia em disputa entre governos e poder judiciário, mas há bons argumentos e precedentes para afirmar que vacinação obrigatória e passaporte sanitário não ferem a liberdade individual e é constitucional o projeto de lei que obriga a vacinação.

Em outro vídeo publicado pelo canal “Os Pingos nos Is” — intitulado “DITADURA DA VACINA EM SP/ ENTREVISTA: SALLES/ PT E JOICE X BOLSONARO — Os Pingos Nos Is — 21/04/21” -, em determinado momento o comentarista Guilherme Fiúza afirma que a iniciativa de se criar um “passaporte da vacina” em São Paulo é “criminosa e um caso de polícia” enquanto uma chamada na tela diz que “SP decide transformar não vacinados em párias”.

Um discurso semelhante foi proferido pro Alexandre Garcia em seu canal, no vídeo “Turismo no Rio só com passaporte… de vacina” em que ele critica um decreto da prefeitura do Rio de Janeiro que impede as pessoas não vacinadas de entrarem em locais públicos, dizendo (erroneamente) que isso é inconstitucional comparando a situação com o nazismo.

Este não é o único argumento contra a vacina de Garcia, que removeu diversos vídeos relacionados à vacinação que possuíam declarações de teor negacionista e conspiratório de seu canal. Recém-demitido pela CNN por defender o “tratamento precoce” contra a COVID-19, Garcia tem mais seguidores no YouTube que a própria emissora.

Tanto o caso de Guilherme Fiúza quanto o de Alexandre Garcia não questionam a eficácia nem a segurança das vacinas, mas defendem que as pessoas possam escolher não se vacinar. Apesar de serem posições contrárias à vacinação, elas formalmente não contrariam as políticas do YouTube pois tratam de questões relativas à liberdade individual (um aspecto não coberto pelas diretrizes). São dois casos em que as lacunas nas regras da plataforma permitem que a desinformação se faça presente, e os vídeos continuem disponíveis.

O problema das experiências pessoais

As mudanças na política do YouTube em relação às vacinas também são frágeis ao permitir que experiências pessoais sobre vacinas sejam compartilhadas. Esse aspecto é uma novidade, pois não era dado enfoque nas experiências pessoais na política sobre COVID-19. De acordo com a plataforma:

“O YouTube também acredita que as pessoas devem ser capazes de compartilhar as próprias experiências, incluindo as com vacinas. Isso significa que podemos abrir exceções para conteúdo em que os YouTubers descrevem experiências pessoais ou de membros da família. Ao mesmo tempo, reconhecemos que há uma diferença entre compartilhar experiências pessoais e promover desinformação sobre as vacinas.”

Em um ambiente com cada vez mais influencers, uma experiência individual pode ter um peso muito maior que um conteúdo produzido de uma forma mais estruturada e planejada. Um caso de uma pessoa pública muito influente e contrária à vacinação contra a COVID-19 é o de Eric Clapton, que chegou a gravar uma música com teor negacionista (“This Has Gotta Stop”, que você pode ouvir a seguir e tem mais de 2.3 milhões de audições no YouTube).

 Em suma, as mudanças de governança resultantes da nova “Política contra desinformação sobre vacinas” do YouTube são positivas, mas ainda muito discretas frente à gravidade do problema. Além disso, há exceções que podem incentivar negativamente as pessoas, atrapalhando a vacinação da população. Além disso, como alguns dos exemplos acima podem evidenciar, há vídeos com grandes números de visualizações que descumprem as diretrizes da plataforma mas ainda assim estão disponíveis para os usuários.

Fica um sabor um pouco agridoce: sabemos que a governança da desinformação envolvendo a COVID-19 ainda tem grandes lacunas, e as mudanças anunciadas pelo YouTube não avançam nessa política. Como a desinformação sobre vacinas de uma forma ampla não é, pelo menos por enquanto, um problema tão grande no Brasil, as novas diretrizes não focam no nosso problema principal neste momento: a desinformação sobre COVID-19.

Texto: Gregório Fonseca
Edição: Carlos d’Andréa

Leitura complementar:

FONSECA, G. A.; D’ANDRÉA, C. Governança e mediações algorítmicas da plataforma YouTube durante a pandemia de COVID-19. Dispositiva, v. 9, n. 16, p. 6–26, 30 dez. 2020.

(Publicado originalmente no R-EST, em setembro de 2021)

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